Detestava crianças. A razão ele mesmo ignorava. Construía para si explicações para uma repulsa que era ela mesma repulsiva para si. Às vezes vagava entre a idéia de que são seres incompletos; incapazes de se comunicar mais profundamente, exigiam paciência, obrigação de quem se aproxima delas, mas não amor ou a ternura ou desejo de estar perto; e a necessidade de assumir a irritação de que não as compreendia, de que elas deviam de fato transmitir muito, mas não lhe era perceptível o o quê. Outras vezes preferia não se colocar em situações que o obrigassem a pensar sobre isso.
Detestava estar em lugares onde tudo a fazer era apenas estar. Ficava feliz em ajudar um amigo nos preparativos de um casamento, fosse do amigo mesmo ou de outro que o amigo ajudava, mas ficar na cerimônia observando era-lhe penoso. Uma angústia de coadjuvante que percebe também bem poder interpretar o papel que o principal se esforça por fazer e o dever de seu papel ser observar. Pôs-se naturalmente a ajudar na cozinha enquanto uma centena de pessoas ocupava lentamente o lugar para no máximo sessenta. Estava em pé, mas tinha um rodo na mão pelas próximas duas horas. A dignidade de um rodo era o fazer, a de estar sentado esperando era nenhuma.
Do burburinho das conversas e negociações implícitas de quem deveria sentar-se notou uma mãe de cabelos louros um pouco secos, longos e encaracolados com um desgrenhado leve mas não o bastante para não ser percebido. duas mechas iam um levemente mais altas e uma outra pendia lançada mais à frente ao lado da cabeça parcialmente cobrindo o rosto e agitando-se com o movimento da mãe e moça que encurvada um pouco para frente girava um pouco para todas as direções buscando alguém reconhecível ou ao menos não ocupado com o próprio prato que pudesse segurar a criança. Estava um pouco acima do peso e com aquelas suaves deformidades pelo corpo que a maternidade provoca e ao mesmo tempo esconde por mais altas prioridades. Era linda. Uma beleza da realidade, beleza que tangencia o evidente e não se deixa transcender para o ideal. Viu-o e foi em sua direção com um rosto cansado que ainda melhor acentuava sua beleza. Surpreendeu-o com o pedido:
- Que bom que você está aí! Segura a Maria Fernanda para mim enquanto eu almoço? É rápido.
Não teve tempo para dar forma a um de seus discursos que, não convencendo nunca pela razão exposta, convenciam sempre da firmeza da decisão de sua resposta e fazia desistir o interlocutor.
- Mas... eu... eu nunca segurei uma criança... ainda mais dessa idade... tenho medo de machucar... sei lá!
A moça não precisou repetir com mais ênfase na súplica pois os que estavam perto logo reforçaram o pedido e contra muitos os discursos não valem. Estendeu os braços e logo percebendo a inadequação da posição recolheu-os um pouco tocando os cotovelos na barriga. Sentiu pesar-lhe nos braços e um cheiro de leite e creme, menos suave que o esperado, para pele com aquele aroma que sempre parece exalar só de recém nascidos. Equilibrou-se e deixou que a falta de qualquer rigidez se conformasse a seus braços. Levou-a ao peito para dar mais firmeza, segurança. Continuava dormindo. Olhou e olhou ainda mais e foi mexendo os braços levemente esperando dar mais conforto. O cheiro para ele tão próprio e alheio de recém nascido era mais forte a ponto de anular todos os outros da cozinha e nele foi-se deixando mover em movimentos tão curtos e lentos que serviam apenas para reforçar a percepção da textura da manta aos seus braços e sentir as variações de temperatura no peito. Olhou e olhou ainda e continuou se movendo para não ser só o peso, mas o que mais pudesse perceber pelo contato naquela menina de duas semanas que dormia e não conseguiu; por mais que tentasse, para que ninguém percebesse, e talvez nem ele mesmo entendesse porque sentia uma vontade crescente de apertá-la, e olhou e aspirava mais fundo tentando tomar mais do perfume; se concentrar para que os olhos parassem de umedecer. Foi para dentro da cozinha e apertou a menina no peito o máximo que julgou possível sem incomodá-la.
As coisas que concebemos com a linguagem parecem primeiro nos vir fora da linguagem. Uma idéia por nascer é antes na mente um dedo apontando "Ali!" e depois, pelo elucidar, tornamos frase o dedo e o que foi apontado. Mas algumas nascem frase primeiro e após ditas a si mesmo se vai atrás do que significam aquelas palavras em sequência e a própria sequência como coisa não formada por partes. Foi dessa última e direto à boca e para si:
- Então é isso que um pai sente?!
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