Às vezes chegava a sua casa e queria sentir-se nela como um homem primitivo na Terra, sem poder ou compreensão do que o rodeia. Entrava e sem acender as luzes deitava no sofá com uma das pernas pendente. balançava-a leve para ouvir o som do bico do sapato tocar o chão e somar-se ao som da brasa do cigarro queimando durante um trago longo. Ambientes escuros, pensava, exigiam algum ruído para estar certo de que ainda estava ali. Como um homem que perdeu todos os sentidos poderia ter certeza de que ainda existia na Terra? que diferença faria para ele se foi transportado à Marte ou colocado no fundo de uma mina? Ouvia o ruído como a uma música querida. Era a certeza de que estava existindo ainda onde ao acender a luz tudo reconheceria.
E não importava que pensamento primeiro lhe chegasse, sempre terminava imaginando-se um civil numa guerra moderna. Abolidos os campos de batalha, ou, sendo mais sincero com o que percebia, abolidas as cidades e campos pois tudo era lugar de combates, via-se numa cidade destruída e vazia onde encontrar comida e abrigo eram prioridades. Via o enredo passar sem conclusão. Roupas sujas e rasgadas, a descoberta da verdadeira e pura importância de um sapato e ao fim dos três quilos de arroz que levava consigo, aqui fazendo uma pausa para o exercício mental descrever como viveria quem já nada tem de seu senão a própria vida e como gostos, modos, costumes e métodos se apagariam diante da ofuscante realidade de que todo trabalho e ação seriam apenas para se manter vivo, ir em busca de algum pacote de ração de cachorro ignorado por outros. Um bom método, imaginava esforçando-se para mesclar resto de civilização e necessidade pura, era cozinhá-la. Talvez desse uma sopa que, ao se crer na embalagem, deveria ser nutritiva. Certamente melhor que papa de arroz engrossada e tingida de ocre com papelão.
O som da brasa e do bico do sapato no chão misturava-se ao de passos com calçado feminino no andar acima. Como pode alguém reclamar dos ruídos de vizinhos se esses são os sons deles existindo? Brigas lhe traziam um mal-estar terrível, soava em sua mente a agressão física uma volta ao estado pré-humano, uma negação, não da civilização, mas da humanidade. Já barulhos de panelas desequilibradas sobre o fogão, passos de volta cansada para casa, bater de portas eram uma prova de que as pessoas estavam sendo pessoas dois metros acima. Era consolador.
As cenas de sobrevivência na cidade devastada começavam a se sobrepôr e repetir-se tomando formas novas e mostrando detalhes distintos à cada volta tornando-se confusas após trinta minutos da entrega ao pensá-las e iam enfraquecendo-se até que sumiam da mente por imagens cotidianas e lembranças de poucas horas antes, mas gravadas na memória, para voltar no dia seguinte e também pouco antes de adormecer. Deixou-se mais relaxadamente no sofá a ponto de o pé alcançar completamente o chão e em seguida levantou-se sem pensar em levantar-se para não adiar mais o momento e foi em busca do interruptor de luz para então voltar ao sofá e de fato pensar na vida, no dia e dele partir para a vida e dela escolher se voltava para a guerra que o faria saborear como um rubi aos olhos o que agora jogam fora ou se voltava ao dia e imaginaria meios de sobreviver a ele e ao que mais fosse inimigo da imaginação, mas o telefone tocou.
[depois termino...]
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