- Eram
bons tempos. A Torre de Pisa não havia caído, a Catedral com forma de bule em Belo Horizonte não havia sido construída e o
segundo volume do Um Homem no Campo não estava ainda escrito - Alberto disse
com falsa despretensão acendendo o cigarro.
-
Bem, escrito estava, só não publicado. - Disse Marcelo, que sempre consertava
as falas dos amigos, mas o fazia com o exato e ao mundo desconhecido tom que o
tornava agradável.
-
Prefiro acreditar que não ainda escrito.
-
E que diferença faz?
-
Muita! É mais divertido pensar que o Abelardo não sabia como continuar a
história e se meteu num misto de procura e desistência encerrado num quarto com
medo das risadas dos críticos.
-
A crítica nem soube da existência dele, coitado.
-
Coitado não, sortudo! E críticos fomos todos sem saber que o que pensávamos
erro fatal de um iniciante era a coluna vertebral e os nervos da história. foi
bom, continuamos rindo, mas dessa vez de nós mesmos. Ele nos pregou uma bela
peça.
-
O Geraldo percebeu, chegou até a comentar, mas com aquela despretensão que dá
às grandes descobertas status de observação prosaica.
-
E falando nele, ali vindo com Fernando. - Disse Alberto apontando para o senhor
de paletó azul escuro ao lado do rapaz de calça e camisa sociais com o corte e
caimento típico de quem está começando a usá-las na vida e não sabe ao certo
como, esperando a fila carros que passavam no cruzamento da Rua São Paulo com a
Santa Maria, há muito precisando de um semáforo, abrir uma brecha para
atravessarem.
-
Parecem amigos mesmo. - Observou Marcelo.
-
Já o eram antes de parecer. Aí está o lado bom das épocas de crise, as pessoas
se unem mais pela semelhança de idéias que pela proximidade de idade, mais pela
visão do levantar-se de um inimigo comum que pela semelhança de posses e
conquistas.
-
Falou como o Geraldo agora, heim!
-
Ando aprendendo com ele. Sente-se, Senhor Geraldo! Fala, Fernando! - Alberto
diz antes mesmo de poderem bem ouvi-lo.
Geraldo
tinha 46 anos, Fernando apenas dezenove e com uma sensatez incomum sempre
tratava os amigos de mais que o dobro de sua idade com quase reverência, mas
sem deixar que ela se mostrasse, talvez por isso fosse melhor percebida,
sem trazer incômodo, e foi bem aceito no grupo de amigos mais velhos. No fundo
sabia que as diferenças de conquistas entre eles eram maior fosso que a idade
e, se tornaram-se os outros mais velhos amigos, mesmo um tendo andado toda a
vida numa Monark Barra Circular e outros podendo trocar de carro a cada três
anos, isso aumentava sua confiança, exceto por ser a boa educação para os mais
velhos um instinto, para ele um esforço.
-
Olá, boa tarde. - disse Fernando a todos, mas em seguida cumprimentando cada um
pelo nome.
-
Sente-se, Senhor Fernando. - Alberto falou enquanto puxava uma cadeira para
Geraldo.
-
Do que os senhores falavam? - Fernando perguntou sem olhar para nenhum diretamente.
-
De sua amizade com o senhor Geraldo. - devolveu Alberto olhando bem para
Fernando e deixando-o constrangido.
-
O que foi, Fernando? - Marcelo perguntou com um sorriso.
-
É inescapável, um jovem entre homens maduros será sempre um jovem entre homens
maduros.
-
Nós gostamos de você, por isso te aborrecemos. - Marcelo acrescenta sabendo que
"o Sim logo após o Não soa melhor que o Sim diretamente."
-
Na verdade falávamos de Hilden Abelardo. Leste-o?
Fernando
havia lido, Geraldo havia lido, Daniel, que acabara de aparecer na esquina,
havia lido. Marcelo e Alberto sabiam, faziam parecer normal, mas no íntimo
admiravam que um feirante, Daniel, e um estudante, Fernando, sabiam, cada um a
seu modo, de tudo de fundamental que eles mesmos sabiam. Daniel tinha 52 anos e
estudara num colégio jesuíta, o que eles também sabiam, mas o que trazia um
íntimo desconforto era a consciência de que se forçassem um pouco, era possível
Daniel soltar-lhes umas frases em grego e latim, isso sim preferiam não saber.
Era visível a todos eles que eram como um grupo de ímãs potentes de diversas
formas, bem juntos, só com grande força poderiam separá-los, mas não se
encaixavam. Porém tinham notícias de amizades assim se formando por todo o
país, isto é, continuavam, como sempre, na normalidade, ainda que a normalidade agora soasse estranha, mas era o desejo de manutenção dela a razão-de-ser inicial
da amizade.
-
Fiquei bem impressionado com este livro, li o volume único, ...
-
Ah, mas aí perde o charme! - Interrompeu Marcelo deixando Fernando atento - Ler
cada um dos três volumes e só comprar o segundo após terminar o primeiro é, sem
exagero, quase fundamental. Você não passou pela época do lançamento. Foram
dois anos para o segundo volume ser publicado. Dois anos de desdém e desconfiança de que algo tão errado num livro não poderia estar errado.
-
É um livro sobre fé. - disse Geraldo falando para Daniel que chegava a pé de
sua tenda no Mercado Municipal.
-
Qual? - Perguntou Daniel pegando a cadeira que Marcelo oferecia a ele tomada da
mesa vazia ao lado.
-
Abelardo, não o da Heloísa, o Hilden.
-
É verdade. - Daniel respondeu laconicamente.
-
Na universidade os poucos que falam dele dizem ser sobre "O tédio da
passagem do tempo e o vazio da existência." - Fernando disse em tom
sarcástico.
-
Pode ser sim, mas não pelas razões que eles imaginam. - Disse Marcelo.
-
Vazio da existência e tédio servem para tudo. Se fosse um livro de oitocentas
páginas sobre um passeio na praia ou de mil sobre uma pescaria em que não
pescaram nada diriam o mesmo. e se pescados 10 surubins, a mesma coisa ainda.
-
Por que sobre fé? - Fernando pergunta. Sabia que preferiam reclamar da situação
do país, das universidades, dos novos costumes quando já próximo o fim da
conversa e horário de cada um sair. Haviam desistido de falar de política
diretamente e só se referir a ela como apêndice de outros temas, pois nada havia mais que falar, a irracionalidade já havia
triunfado no país e o mero tocar no assunto despertava raiva, raiva seguida de uma
melancolia que punha logo em todos um desejo de ir embora e voltar para a
realidade mais firme do lar. Exceto Marcelo, que misturava lamentos com piadas com uma naturalidade que parecia não se deixar afetar
pelos acontecimentos que agora cercavam a todos. Alguns homens são naturalmente
felizes, como muitas mulheres são naturalmente bonitas, num lugar normal ambos
encontram muitos amigos gratos e desafetos injustificados, mas nessa época
essas coisas se amortecem e basta uma fagulha do "também vejo o que você
vê" para tornar cúmplices os que em outra situação estariam até o fim da vida separados.
-
Comecei achando que era um livro histórico. - Diz Alberto - Estranho histórico.
-
Eu também, mas Hilden narra tudo de longe e só pega um estado geral periférico,
ao menos geograficamente, dos grandes fatos, apesar de que narra em detalhes
essas periferias. Mas, qual o erro fatal?
-
Você leu num volume único e imagino que tenha lido todo de uma vez.
-
Demorei quatro dias lendo a todo tempo livre.
-
É por isso. Nós lemos o primeiro volume, eu 5 meses depois fui ler o segundo,
Geraldo teve de esperar os 2 anos. Nisso que dá ler coisa recém publicada... -
disse Marcelo.
-
Quem o leu antes teve a impressão de que o autor não atinou que um personagem
que tem 36 anos em 1769 não pode chegar a 1888. - Disse Geraldo.
-
E vivendo como se ainda tivesse 36 anos. E 1888 só no primeiro volume, no fim
do terceiro ele morre, em 1992! - Marcelo acrescentou.
-
Quando vi isso, já estava no fim do que é o segundo volume na edição antiga. -
Fernando diz com um pouco de lamento. - E durou pouco porque me lembrei que já
haviam me dito que ele não envelhece.
-
Ele parou de envelhecer quando perdeu a fé. - Daniel acrescentou com o seu tom
involuntário de sempre enunciar uma verdade.
-
E volta a envelhecer após recuperá-la. É essa a essência do livro. Ele perde a
fé entusiasmado com as idéias iluministas dez anos antes da Revolução e então
começa a viver sem envelhecer. Mas o autor não nos conta isso, apenas vai
narrando sua vida, suas viagens fugindo dos jacobinos, seus subempregos, seu
sentar numa cadeira no quintal sem saber o que fazer... Quando você percebe ele
já está vendo um quadro de Van Gogh, que morreu naquele ano, servindo de porta
para um galinheiro.
-
Desculpem, mas lembrei de uma piada dos jacobinos de hoje...
-
Desde quando eles fazem piadas? - Marcelo interrompe Alberto.
-
Não sei se é deles, e é "jacobinos" de hoje. Como eles passaram a
detestar Hilden após serem informados de sobre que trata mesmo o livro, acho
que é deles. Mas nem é bem uma piada, é um comentário: "O Homem no Campo é
um Forrest Gump com dois séculos e meio."
-
Maldade... Hilden coloca o Hillaire Laurent para viver tudo de mais importante
que se passava no mundo, mas sempre de longe, anônimo, comum, sem nenhum poder
de interferir em coisa alguma!
-
Na Segunda Guerra ele sofre bastante.
-
Mas na ilha de Malta. Malta ficou com os ingleses por toda a guerra, sofreu
bombardeios, mas não as atrocidades que marcaram a guerra.
-
As páginas em que Hilden narra a chegada do Ohio a Malta são impressionantes.
-
É quando a conversão dele começa.
-
Ele se converte após voltar para a França na década de 1950...
-
Não, na França Laurent realmente desiste de si e se entrega naquela cena em que
ele se ajoelha diante do confessionário vazio por não se sentir digno nem de
chegar a um altar lateral na Igreja de Rue du Bac. É em Malta que tudo começa,
quando ele está descrevendo a impressão que causou a chegada do petroleiro Ohio
todo destruído e amarrado a uma corveta de cada lado, quase afundando.
- É verdade. Laurent diz
que diante do terror da certeza da rendição aos nazistas, ver o Ohio chegando
com comida, munição e combustível trouxe a sensação de 1769 quando achou
que havia encontrado o sentido de tudo nas idéias que geraram a Revolução. É
isso que o assusta.
-
O assusta pelo conforto de uma sensação tão boa de há tanto tempo e a lembrança
de a que ela se referia, do que tornou o a que ela se referia.
-
Isso, o Ohio era vida, o segredo dos revolucionários gerou só mortes. Não podia
sentir o mesmo para duas coisas tão distintas e começou a perceber que pouco
adiantava o que se falava, importava só o que algo era de fato.
-
Foi a iluminação dele. Daí começou a se lembrar cada vez mais da antiga Fé...
-
Acho engraçado ele não perceber que não envelhece.
-
Não só não percebe que não envelhece como não percebe um monte de coisas, é
quase sempre pego de surpresa pelos grandes acontecimentos, apesar de ser
esperto o bastante para prever os pequenos.
-
Mas é outra das mensagens do livro: "Perdeu a Fé, amputou a percepção. Os
pés deixam o chão e se começa a ir para qualquer direção segundo o vento das
palavras, dos discursos, agindo com o Mal em concurso."
-
É o resumo de tudo essa fala do Carmelita que conversou com Laurent. Quando os
neojacobinos descobrirem isso... vão mandar queimar o livro e não só ignorá-lo.
-
O fundo do poço é a narração da posição dele sobre as notícias de Lourdes.
Hilden deve ter pesquisado muito os xingamentos, opa!, argumentos da época para
colocá-los na boca dos personagens.
-
Ei, Laurent se ajoelha num confessionário em Nevers e não na Igreja de Nossa
Senhora das Graças! Por esta ele passa, admira o Altar, mas teme dizer qualquer
coisa, a alguém, a si e a Deus.
-
Ah, é mesmo! Isso mesmo! Mas a questão dele não saber que envelhecia, o que fez
muita gente boa titulada por aí desprezar o livro, é tão fundamental e surreal
quanto não envelhecer. Ele perdeu a realidade quando se tornou revolucionário,
mas mesmo deixando de sê-lo, achou que o mundo era só um simples passar, por
isso não via que envelhecia.
-
Ou seja, continuou revolucionário sem saber.
-
Ou seja, entrou no purgatório na terra.
-
É uma boa interpretação... Quando ele chama a hoje Santa Bernadette Soubirous
de "menina ignorante remelenta para a qual apenas sub-humanos se
rebaixam" é o marco do revolucionário involuntário. Ele detesta a
revolução, mas acredita só no que ela colocou como acreditável. E volta à
Igreja exatamente onde viveu Santa Bernadette 100 anos antes.
-
Passam os tempos e o homem continua o mesmo, mesmos erros diante das mesmas
situações.
-
O senhor está falando do livro ou do Brasil?
Aqui todos riem muito. Um sorrir de consolo, param aos poucos e não
precisam mais dizer algo. Está claro; tudo rui ao redor, mas pode-se continuar,
o martelo que fende as colunas não é capaz de dispersar os pedaços delas e a
nuvem de pó o deixa sem certeza de onde novamente golpear. Do monturo das colunas
algo mais pode ser erguido, está claro, os montes de pedaços formarão a base
das novas colunas, desde que mantenham-se juntos até unirem-se de novo: uma
nova rocha. Alberto havia traído a esposa com uma mulher de mesma idade, o que
assustou muitas pessoas, pois fosse com alguma aluna seria normal, ou, sendo
mais preciso, comum. Relacionar-se com uma mulher mais nova, tão mais nova, era
para ele uma falha grave de caráter, seria humilhante para a esposa, seria baixo. Diziam que alguns homens fazem o errado, outros
fazem o certo da maneira errada, mas Alberto tentou fazer o errado da maneira
certa. Daniel era apadrinhado na infância por um fazendeiro, recebeu boa
educação e, nas palavras dele, "dormi certa vez uma manhã inteira após me
formar e quando acordei estava com quarenta anos, três filhos e vendendo
queijos no Mercado Municipal". Viveu cada dia cada vez mais calado, todo
dia chamando a atenção dos filhos para que estudassem, respeitosamente nenhum
deles jamais disse-lhe "Para quê? Para continuar pobre?". Marcelo
ainda não havia se casado e ninguém sabe se pensava nisso e escondia ou
realmente não se importava. Morava com duas tias, a mãe e uma irmã numa casa
própria cuja compra marcou seu poder dizer a si "venci na vida", mas
em seguida foi aceitando todos os parentes em dificuldade e tornou-se de novo o
mais novo de sua casa. Geraldo é advogado, não somente advogado. Foi e é pai,
esposo, tio, amigo, patrão, sócio, inimigo e mais, mas, antes, sempre acima
de tudo, advogado, por isso quase ganhou um divórcio, foi quando deixou de ser
primeiro advogado para ser advogado também. Fernando é estudante de Direito
da Universidade Estadual de Montes Claros, a Unimontes.
[trecho de um conto ainda não terminado...
Sobre o comboio de salvamento à Malta, a Operação Pedestal: https://www.youtube.com/watch?v=_4XDoZpM3As
Sobre a História de Santa Bernadette Soubirous, a vidente de Lourdes: https://padrepauloricardo.org/episodios/a-impressionante-historia-de-nossa-senhora-de-lourdes
O Altar à Nossa Senhora das Graças na Capela da Medalha Milagrosa, a Capela da Rue du Bac: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfl8afnbNrjaNR8CA0SeeIHhR1d-FL4B20G5GmMvrEjyyxhZEuRFvMZ_oXCeHmonbUIkyuD8QlyXQTJFn0nSANfHl8rrAnV7BK6rcZRrOTyrV5uEcyO0zA7d1_kjfpeZU3ME7c6EzmjBY/s1600/Altar-Rue_du_Bac.jpg ]
Sobre o comboio de salvamento à Malta, a Operação Pedestal: https://www.youtube.com/watch?v=_4XDoZpM3As
Sobre a História de Santa Bernadette Soubirous, a vidente de Lourdes: https://padrepauloricardo.org/episodios/a-impressionante-historia-de-nossa-senhora-de-lourdes
O Altar à Nossa Senhora das Graças na Capela da Medalha Milagrosa, a Capela da Rue du Bac: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfl8afnbNrjaNR8CA0SeeIHhR1d-FL4B20G5GmMvrEjyyxhZEuRFvMZ_oXCeHmonbUIkyuD8QlyXQTJFn0nSANfHl8rrAnV7BK6rcZRrOTyrV5uEcyO0zA7d1_kjfpeZU3ME7c6EzmjBY/s1600/Altar-Rue_du_Bac.jpg ]
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