sexta-feira, 20 de março de 2015

Um Diálogo

- Eram bons tempos. A Torre de Pisa não havia caído, a Catedral com forma de bule em  Belo Horizonte não havia sido construída e o segundo volume do Um Homem no Campo não estava ainda escrito - Alberto disse com falsa despretensão acendendo o cigarro.
- Bem, escrito estava, só não publicado. - Disse Marcelo, que sempre consertava as falas dos amigos, mas o fazia com o exato e ao mundo desconhecido tom que o tornava agradável.
- Prefiro acreditar que não ainda escrito.
- E que diferença faz?
- Muita! É mais divertido pensar que o Abelardo não sabia como continuar a história e se meteu num misto de procura e desistência encerrado num quarto com medo das risadas dos críticos.
- A crítica nem soube da existência dele, coitado.
- Coitado não, sortudo! E críticos fomos todos sem saber que o que pensávamos erro fatal de um iniciante era a coluna vertebral e os nervos da história. foi bom, continuamos rindo, mas dessa vez de nós mesmos. Ele nos pregou uma bela peça.
- O Geraldo percebeu, chegou até a comentar, mas com aquela despretensão que dá às grandes descobertas status de observação prosaica.
- E falando nele, ali vindo com Fernando. - Disse Alberto apontando para o senhor de paletó azul escuro ao lado do rapaz de calça e camisa sociais com o corte e caimento típico de quem está começando a usá-las na vida e não sabe ao certo como, esperando a fila carros que passavam no cruzamento da Rua São Paulo com a Santa Maria, há muito precisando de um semáforo, abrir uma brecha para atravessarem.
- Parecem amigos mesmo. - Observou Marcelo.
- Já o eram antes de parecer. Aí está o lado bom das épocas de crise, as pessoas se unem mais pela semelhança de idéias que pela proximidade de idade, mais pela visão do levantar-se de um inimigo comum que pela semelhança de posses e conquistas.
- Falou como o Geraldo agora, heim!
- Ando aprendendo com ele. Sente-se, Senhor Geraldo! Fala, Fernando! - Alberto diz antes mesmo de poderem bem ouvi-lo.

Geraldo tinha 46 anos, Fernando apenas dezenove e com uma sensatez incomum sempre tratava os amigos de mais que o dobro de sua idade com quase reverência, mas sem deixar que ela se mostrasse, talvez por isso fosse melhor percebida, sem trazer incômodo, e foi bem aceito no grupo de amigos mais velhos. No fundo sabia que as diferenças de conquistas entre eles eram maior fosso que a idade e, se tornaram-se os outros mais velhos amigos, mesmo um tendo andado toda a vida numa Monark Barra Circular e outros podendo trocar de carro a cada três anos, isso aumentava sua confiança, exceto por ser a boa educação para os mais velhos um instinto, para ele um esforço.

- Olá, boa tarde. - disse Fernando a todos, mas em seguida cumprimentando cada um pelo nome.
- Sente-se, Senhor Fernando. - Alberto falou enquanto puxava uma cadeira para Geraldo.
- Do que os senhores falavam? - Fernando perguntou sem olhar para nenhum diretamente.
- De sua amizade com o senhor Geraldo. - devolveu Alberto olhando bem para Fernando e deixando-o constrangido.
- O que foi, Fernando? - Marcelo perguntou com um sorriso.
- É inescapável, um jovem entre homens maduros será sempre um jovem entre homens maduros.
- Nós gostamos de você, por isso te aborrecemos. - Marcelo acrescenta sabendo que "o Sim logo após o Não soa melhor que o Sim diretamente."
- Na verdade falávamos de Hilden Abelardo. Leste-o?

Fernando havia lido, Geraldo havia lido, Daniel, que acabara de aparecer na esquina, havia lido. Marcelo e Alberto sabiam, faziam parecer normal, mas no íntimo admiravam que um feirante, Daniel, e um estudante, Fernando, sabiam, cada um a seu modo, de tudo de fundamental que eles mesmos sabiam. Daniel tinha 52 anos e estudara num colégio jesuíta, o que eles também sabiam, mas o que trazia um íntimo desconforto era a consciência de que se forçassem um pouco, era possível Daniel soltar-lhes umas frases em grego e latim, isso sim preferiam não saber. Era visível a todos eles que eram como um grupo de ímãs potentes de diversas formas, bem juntos, só com grande força poderiam separá-los, mas não se encaixavam. Porém tinham notícias de amizades assim se formando por todo o país, isto é, continuavam, como sempre, na normalidade, ainda que a normalidade agora soasse estranha, mas era o desejo de manutenção dela a razão-de-ser inicial da amizade.

- Fiquei bem impressionado com este livro, li o volume único, ...
- Ah, mas aí perde o charme! - Interrompeu Marcelo deixando Fernando atento - Ler cada um dos três volumes e só comprar o segundo após terminar o primeiro é, sem exagero, quase fundamental. Você não passou pela época do lançamento. Foram dois anos para o segundo volume ser publicado. Dois anos de desdém e desconfiança de que algo tão errado num livro não poderia estar errado.
- É um livro sobre fé. - disse Geraldo falando para Daniel que chegava a pé de sua tenda no Mercado Municipal.
- Qual? - Perguntou Daniel pegando a cadeira que Marcelo oferecia a ele tomada da mesa vazia ao lado.
- Abelardo, não o da Heloísa, o Hilden.
- É verdade. - Daniel respondeu laconicamente.
- Na universidade os poucos que falam dele dizem ser sobre "O tédio da passagem do tempo e o vazio da existência." - Fernando disse em tom sarcástico.
- Pode ser sim, mas não pelas razões que eles imaginam. - Disse Marcelo.
- Vazio da existência e tédio servem para tudo. Se fosse um livro de oitocentas páginas sobre um passeio na praia ou de mil sobre uma pescaria em que não pescaram nada diriam o mesmo. e se pescados 10 surubins, a mesma coisa ainda.
- Por que sobre fé? - Fernando pergunta. Sabia que preferiam reclamar da situação do país, das universidades, dos novos costumes quando já próximo o fim da conversa e horário de cada um sair. Haviam desistido de falar de política diretamente e só se referir a ela como apêndice de outros temas, pois nada havia mais que falar, a irracionalidade já havia triunfado no país e o mero tocar no assunto despertava raiva, raiva seguida de uma melancolia que punha logo em todos um desejo de ir embora e voltar para a realidade mais firme do lar. Exceto Marcelo, que misturava lamentos com piadas com uma naturalidade que parecia não se deixar afetar pelos acontecimentos que agora cercavam a todos. Alguns homens são naturalmente felizes, como muitas mulheres são naturalmente bonitas, num lugar normal ambos encontram muitos amigos gratos e desafetos injustificados, mas nessa época essas coisas se amortecem e basta uma fagulha do "também vejo o que você vê" para tornar cúmplices os que em outra situação estariam até o fim da vida separados.

- Comecei achando que era um livro histórico. - Diz Alberto - Estranho histórico.
- Eu também, mas Hilden narra tudo de longe e só pega um estado geral periférico, ao menos geograficamente, dos grandes fatos, apesar de que narra em detalhes essas periferias. Mas, qual o erro fatal?
- Você leu num volume único e imagino que tenha lido todo de uma vez.
- Demorei quatro dias lendo a todo tempo livre.
- É por isso. Nós lemos o primeiro volume, eu 5 meses depois fui ler o segundo, Geraldo teve de esperar os 2 anos. Nisso que dá ler coisa recém publicada... - disse Marcelo.
- Quem o leu antes teve a impressão de que o autor não atinou que um personagem que tem 36 anos em 1769 não pode chegar a 1888. - Disse Geraldo.
- E vivendo como se ainda tivesse 36 anos. E 1888 só no primeiro volume, no fim do terceiro ele morre, em 1992! - Marcelo acrescentou.
- Quando vi isso, já estava no fim do que é o segundo volume na edição antiga. - Fernando diz com um pouco de lamento. - E durou pouco porque me lembrei que já haviam me dito que ele não envelhece.
- Ele parou de envelhecer quando perdeu a fé. - Daniel acrescentou com o seu tom involuntário de sempre enunciar uma verdade.
- E volta a envelhecer após recuperá-la. É essa a essência do livro. Ele perde a fé entusiasmado com as idéias iluministas dez anos antes da Revolução e então começa a viver sem envelhecer. Mas o autor não nos conta isso, apenas vai narrando sua vida, suas viagens fugindo dos jacobinos, seus subempregos, seu sentar numa cadeira no quintal sem saber o que fazer... Quando você percebe ele já está vendo um quadro de Van Gogh, que morreu naquele ano, servindo de porta para um galinheiro.
- Desculpem, mas lembrei de uma piada dos jacobinos de hoje...
- Desde quando eles fazem piadas? - Marcelo interrompe Alberto.
- Não sei se é deles, e é "jacobinos" de hoje. Como eles passaram a detestar Hilden após serem informados de sobre que trata mesmo o livro, acho que é deles. Mas nem é bem uma piada, é um comentário: "O Homem no Campo é um Forrest Gump com dois séculos e meio."
- Maldade... Hilden coloca o Hillaire Laurent para viver tudo de mais importante que se passava no mundo, mas sempre de longe, anônimo, comum, sem nenhum poder de interferir em coisa alguma!
- Na Segunda Guerra ele sofre bastante.
- Mas na ilha de Malta. Malta ficou com os ingleses por toda a guerra, sofreu bombardeios, mas não as atrocidades que marcaram a guerra.
- As páginas em que Hilden narra a chegada do Ohio a Malta são impressionantes.
- É quando a conversão dele começa.
- Ele se converte após voltar para a França na década de 1950...
- Não, na França Laurent realmente desiste de si e se entrega naquela cena em que ele se ajoelha diante do confessionário vazio por não se sentir digno nem de chegar a um altar lateral na Igreja de Rue du Bac. É em Malta que tudo começa, quando ele está descrevendo a impressão que causou a chegada do petroleiro Ohio todo destruído e amarrado a uma corveta de cada lado, quase afundando.
- É verdade. Laurent diz que diante do terror da certeza da rendição aos nazistas, ver o Ohio chegando com comida, munição e combustível trouxe a sensação de 1769 quando achou que havia encontrado o sentido de tudo nas idéias que geraram a Revolução. É isso que o assusta.
- O assusta pelo conforto de uma sensação tão boa de há tanto tempo e a lembrança de a que ela se referia, do que tornou o a que ela se referia.
- Isso, o Ohio era vida, o segredo dos revolucionários gerou só mortes. Não podia sentir o mesmo para duas coisas tão distintas e começou a perceber que pouco adiantava o que se falava, importava só o que algo era de fato.
- Foi a iluminação dele. Daí começou a se lembrar cada vez mais da antiga Fé...
- Acho engraçado ele não perceber que não envelhece.
- Não só não percebe que não envelhece como não percebe um monte de coisas, é quase sempre pego de surpresa pelos grandes acontecimentos, apesar de ser esperto o bastante para prever os pequenos.
- Mas é outra das mensagens do livro: "Perdeu a Fé, amputou a percepção. Os pés deixam o chão e se começa a ir para qualquer direção segundo o vento das palavras, dos discursos, agindo com o Mal em concurso."
- É o resumo de tudo essa fala do Carmelita que conversou com Laurent. Quando os neojacobinos descobrirem isso... vão mandar queimar o livro e não só ignorá-lo.
- O fundo do poço é a narração da posição dele sobre as notícias de Lourdes. Hilden deve ter pesquisado muito os xingamentos, opa!, argumentos da época para colocá-los na boca dos personagens.
- Ei, Laurent se ajoelha num confessionário em Nevers e não na Igreja de Nossa Senhora das Graças! Por esta ele passa, admira o Altar, mas teme dizer qualquer coisa, a alguém, a si e a Deus.
- Ah, é mesmo! Isso mesmo! Mas a questão dele não saber que envelhecia, o que fez muita gente boa titulada por aí desprezar o livro, é tão fundamental e surreal quanto não envelhecer. Ele perdeu a realidade quando se tornou revolucionário, mas mesmo deixando de sê-lo, achou que o mundo era só um simples passar, por isso não via que envelhecia.
- Ou seja, continuou revolucionário sem saber.
- Ou seja, entrou no purgatório na terra.
- É uma boa interpretação... Quando ele chama a hoje Santa Bernadette Soubirous de "menina ignorante remelenta para a qual apenas sub-humanos se rebaixam" é o marco do revolucionário involuntário. Ele detesta a revolução, mas acredita só no que ela colocou como acreditável. E volta à Igreja exatamente onde viveu Santa Bernadette 100 anos antes.
- Passam os tempos e o homem continua o mesmo, mesmos erros diante das mesmas situações.
- O senhor está falando do livro ou do Brasil?

Aqui todos riem muito. Um sorrir de consolo, param aos poucos e não precisam mais dizer algo. Está claro; tudo rui ao redor, mas pode-se continuar, o martelo que fende as colunas não é capaz de dispersar os pedaços delas e a nuvem de pó o deixa sem certeza de onde novamente golpear. Do monturo das colunas algo mais pode ser erguido, está claro, os montes de pedaços formarão a base das novas colunas, desde que mantenham-se juntos até unirem-se de novo: uma nova rocha. Alberto havia traído a esposa com uma mulher de mesma idade, o que assustou muitas pessoas, pois fosse com alguma aluna seria normal, ou, sendo mais preciso, comum. Relacionar-se com uma mulher mais nova, tão mais nova, era para ele uma falha grave de caráter, seria humilhante para a esposa, seria baixo. Diziam que alguns homens fazem o errado, outros fazem o certo da maneira errada, mas Alberto tentou fazer o errado da maneira certa. Daniel era apadrinhado na infância por um fazendeiro, recebeu boa educação e, nas palavras dele, "dormi certa vez uma manhã inteira após me formar e quando acordei estava com quarenta anos, três filhos e vendendo queijos no Mercado Municipal". Viveu cada dia cada vez mais calado, todo dia chamando a atenção dos filhos para que estudassem, respeitosamente nenhum deles jamais disse-lhe "Para quê? Para continuar pobre?". Marcelo ainda não havia se casado e ninguém sabe se pensava nisso e escondia ou realmente não se importava. Morava com duas tias, a mãe e uma irmã numa casa própria cuja compra marcou seu poder dizer a si "venci na vida", mas em seguida foi aceitando todos os parentes em dificuldade e tornou-se de novo o mais novo de sua casa. Geraldo é advogado, não somente advogado. Foi e é pai, esposo, tio, amigo, patrão, sócio, inimigo e mais, mas, antes, sempre acima de tudo, advogado, por isso quase ganhou um divórcio, foi quando deixou de ser primeiro advogado para ser advogado também. Fernando é estudante de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros, a Unimontes.

[trecho de um conto ainda não terminado...

Sobre o comboio de salvamento à Malta, a Operação Pedestal: https://www.youtube.com/watch?v=_4XDoZpM3As

Sobre a História de Santa Bernadette Soubirous, a vidente de Lourdes: https://padrepauloricardo.org/episodios/a-impressionante-historia-de-nossa-senhora-de-lourdes

O Altar à Nossa Senhora das Graças na Capela da Medalha Milagrosa, a Capela da Rue du Bac: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfl8afnbNrjaNR8CA0SeeIHhR1d-FL4B20G5GmMvrEjyyxhZEuRFvMZ_oXCeHmonbUIkyuD8QlyXQTJFn0nSANfHl8rrAnV7BK6rcZRrOTyrV5uEcyO0zA7d1_kjfpeZU3ME7c6EzmjBY/s1600/Altar-Rue_du_Bac.jpg 
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